Steiner vs Descartes (sobre teorias e práticas)

Estas longas noites de Inverno, esta aproximação do fim do ano, esta época propícia a balanços fazem-me sempre reflectir nas minhas escolhas. Afinal de contas é isso a nossa vida, uma (infinita) sucessão de escolhas.

dezembro maegazine

Dou por mim a pesquisar livros numa conhecida loja online e tropeço num livro de pedagogia Waldorf que me parece bastante interessante e pondero bem se vale a pena encomendar ou não. Enquanto escrevo estas palavras ainda não encomendei. Mas cá estou eu a pensar.

A pensar como, nos meus 36 anos de existência, conheço relativamente bem a pedagogia Waldorf, ou alguns aspectos dela. Há bem mais do que metade da minha vida. Há dois terços pelo menos!

Tive a sorte de conhecer e privar muito frequentemente com uma das pessoas responsáveis pela introdução desta pedagogia em Portugal. Graças ao meu saudoso amigo queimei cardos e saltei fogueiras de São João; fiei novelos de lã a partir de lã pura; recebi sabonetes de calêndula da Weleda quando ninguém tinha ouvido falar dessa marca em Portugal; visitei a Casa de Santa Isabel no seu início e vi as fontes por onde a água corre de forma orgânica (e ainda guardo uma bolsa aí feita); corri pela Estufa Fria nos dias em que aí decorria a feira de produtos ditos alternativos; ouvi uma oração à Natureza antes das refeições; desenhava os símbolos dos vários planetas para designar cada dia da semana; conheço de cor termos como agricultura biodinâmica ou euritmia; guardo com carinho o calendário do ano de 1993 da Weleda, magnificamente ilustrado por Gabriela de Carvalho, de onde vêm as imagens que ilustram o artigo de hoje; ainda não tinha 12 anos quando ouvi pela primeira vez a teoria do ciclo de sete anos na formação do ser humano; imaginava o Goetheanum; Rudolf Steiner e antroposofia são nomes muito familiares; sempre achei que dos 4 temperamentos era sanguínea (agora não sei se não será colérica…) e percebi que o vermelho do Natal e o azul do Verão serviam para contrabalançar as cores naturais das estações – azul de Inverno e vermelho de Verão.
Ouvi também que somos nós que escolhemos os nossos pais; que somos matéria e espírito; que temos um corpo de energia, o tal espírito, que nos transcende.

E aqui é que a porca torce o rabo.

Não é por ter mergulhado no caldeirão Waldorf (e no da macrobiótica também, a propósito) muito cedo que deixei de crescer com uma mente (espírito?) altamente cartesiana. O meu cérebro funciona sobretudo no hemisfério esquerdo, lógico, racional, terra-a-terra, literal, prático.

Quando há poucas semanas tropecei no site da francesa Céline Alvarez, com a sua abordagem montessoriana da criança, muito a partir das neurociências, tive uma epifania. Foi de tal forma que escrevi este artigo a altas horas da noite. Para mim é, de longe, a abordagem mais lógica da criança e da sua aprendizagem. Não há cá esoterismos, energias a pairar e desenhos que não podem ser lineares. Há desenvolvimento do cérebro, janelas de oportunidade, saltos cognitivos, vida prática.

Mas os meus filhos andam em escolas normais, com abordagens normais. Nem Waldorf nem Montessori.

O ano escolar e o ano tout court é marcado por celebrações. Os 365 (366 em 2016!) dias do ano passam por dois equinócios, dois solstícios, uma Epifania, um Carnaval (uma Quaresma), uma Páscoa, alguns santos populares, férias de Verão, um São Martinho, um Pão-por-Deus, um Advento e um Natal. Para além dos aniversários, feriados nacionais, dias do pai e da mãe e afins.

Quer queira quer não, o ano está marcado por certas tradições ligadas ao ano litúrgico que fazem parte da minha cultura cristã. Crente ou descrente, não posso fazer de conta que não existem.

Curiosamente é nesta altura do Advento/ Natal/ Reis (Epifania) que dou por mim a querer criar/acalentar tradições e rituais familiares. Não é por gostar de ler os textos do padre Tolentino que sou forçosamente católica, ou mesmo cristã (tenho, aliás, um problema igualmente cartesiano neste campo…). Mas o facto de ter filhos fez-me pesquisar sobre o porquê destas festas (inter)nacionais, e para perceber tive de estudar a coisa com um bocado mais de profundidade. E assim vou instituindo umas quantas tradições cá por casa.

janeiro maegazine

E é exactamente nesta altura do ano que dou por mim a fazer o balanço de que falava no início. Como apesar do meu cartesianismo, me sinto tão impelida pela abordagem calorosa, cosy se quiserem, do Natal pela cultura Waldorf, com os seus anjos coloridos dos mundos mineral, vegetal, animal e humano. Como esta abordagem onírica e mágica contrasta tanto com o lado cool, desprendido e frio da versão científica da vida. Como no meu íntimo procuro mais deste mundo de histórias fantásticas e totalmente irrealistas. Imagens quentinhas que me dão uma sensação de pertença.

Por outro lado chateia-me o pacote completo, o lado esotérico das teorias dos planetas e dos minerais e da sua influência no ser humano e no mundo em geral. Tal como me chateia o lado esotérico da macrobiótica quando fala da evolução do ser humano e dos cereais, como temos de equilibrar o yin e o yang com a comida, sobretudo porque o yang se desequilibra se usarmos demasiadas calças e poucas saias e que o chi não circula bem se cozinharmos em placa de indução e ai de nós se usarmos forno microondas. E já agora que o fogão não esteja ao lado da torneira porque dá cabo do chi (e de chi) em menos de nada e depois venham cá chorar que a vida vos corre mal, ah pois.

As teorias que sustentam práticas que achamos interessantes não são forçosamente interessantes na nossa perspectiva.

E é por essas e por outras que vou continuando à margem, tentando trilhar um percurso muito meu, feito à base de escolhas muito reflectidas que não entram em conflito com o meu sistema de valores e crenças. Dilemas? Tenho-os regularmente. Conflitos de hemisférios cerebrais também, mas tirando um bocadinho daqui, um bocadinho dali, vou tentando construir, criar e acalentar umas tradições que me façam sentido. Ainda que não as possa catalogar.

Qual é a vossa postura face a estas mesmas questões? Também sentem dilemas?

melro

PS – encomendei o livro à mesma 😉


Aqui no Mãegazine fala-se de coisas ligadas à criançada, mas também a estas abordagens um pouco diferentes das divulgadas através da educação nacional (pública). Já se escreveu sobre o método Montessori e sobre a abordagem Waldorf também. Meio blogue meio magazine, podem acompanhar também por mail, Facebook ou Pinterest! Até já

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14 comentários sobre “Steiner vs Descartes (sobre teorias e práticas)

  1. Descreves na perfeição o que sinto relativamente a diversas correntes pedagógicas, nomeadamente a waldorf. Também tenho a postura de beber um pouco de cada uma. O meu filho está em casa mas vai todas as semanas a um espaço waldorf e agora que ele está lá posso comprovar o que sentia quando lia sobre o assunto. Gosto de muitos aspectos mas jamais a seguiria afincadamente. Sou muito emocional (demais até, e também tenho duvidas entre a sanguínea e a colérica 🙂 ) mas sou ao mesmo tempo muito racional e ligada às ciências. Ele vai lá porque foi um sitio que gostei na forma como tratam as crianças (e os pais). Gostava muito que no futuro ele pudesse estar numa escola onde fosse tratado desta forma, com respeito e compreensão. Portanto, não é por ser waldorf, mas porque em determinados locais que seguem certas correntes, há uma sintonia na forma como se encara o desenvolvimento da criança em termos de ritmos e outras questões, algo que vejo ser dificil de encontrar em locais “comuns”. O mais provável é que os meus filhos venham a frequentar o ensino público no futuro e tenho muito receio do que lhes irá cair na rifa.

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  2. Obrigada pelo comentário (e já corrigi a minha gralha)! Deve ser muito fixe ter um espaço Waldorf onde deixar as crianças. Onde moro é impossível. A questão é mesmo essa, a prática vale a pena, mas não temos de aceitar a teoria na íntegra.
    No meu caso sinto sempre um certo paradoxo, por uma questão de coerência. Mas não tem de ser forçosamente ou tudo ou nada, podemos retirar o que nos interessa, desde que não colida com os nossos valores. É que isto de vestir camisolas tem muito que se lhe diga, mais vale vestirmos a nossa própria roupa 😉

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  3. Na verdade é de inspiração waldorf (esqueci esse pormenor). E depois, com a mesma corrente, suponho que seja diferente de local para local. Por exemplo, eu não sou vegetariana e o meu filho leva na marmita o que naquele dia me der jeito, tenha ou não carne ou peixe e não sinto qualquer tipo de reacção negativa a isso, embora quase todos sejam vegetarianos ou vegan. Já soube de locais onde não é bem assim e se parte do pressuposto que frequentar aquele espaço implica aderir totalmente a certas coisas. Tenho tido vontade de aumentar o número de refeições vegetarianas mas não quero eliminar da minha alimentação a carne e o peixe. Há respeito pela diversidade e pelo não seguimento disto ou daquilo e isso é importante para mim senão seria estilo seita. E há ainda outra questão (isto dá pano para mangas e interesso-me muito por este assunto) que se prende com os preços praticados. Sinto que não é coerente e acaba por ser uma coisa meia elitista. O que eu gostava mesmo é que os meus filhos frequentassem o público, com todo o tipo de crianças, mas com professores e funcionários que estivessem mais sensibilizados para a prática de uma educação mais positiva e que vá ao encontro das necessidades das crianças. Aquilo que observo é que, podendo pagar, acabaria por preferir que eles fossem para uma escola privada com uma pedagogia desse género (e existem as que não seguem totalmente uma corrente e bebem várias). O problema é conseguir pagar e a logística, já que não abundam perto de nossa casa…é tudo centro de Lisboa, Cascais, Restelo..pois, porque será?
    Portanto, sei que a certa altura se vai colocar o seguinte dilema: trabalhar demasiado e ser uma mãe menos presente para irem para a escola x ou irem para a escola aqui perto de casa com tudo o que me desagrada mas terem uma mãe mais presente? Talvez ganhe esta última…não sei, a integração deles provavelmente dará a resposta.

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  4. Nem mais. Eu estou nesta tua última opção – escola pública ao lado de casa e mãe mais presente (ainda que a lutar por estar mais *presente* e não apenas ali em casa). Escola pública mergulha-os logo na sociedade, nas assimetrias, nas diferentes posturas dos pais, culturas, etc. Tem essa vantagem. As escolas privadas fazem uma selecção prévia, baseada, nem que mais não seja, na capacidade económica dos pais. É forçoso que tenham melhores resultados a nível de provas nacionais (que valem o que valem. Leste o artigo do pediatra sobre isto? Está no FB daqui do site).

    Falamos muitas vezes disso cá em casa, para termos a educação xpto que queríamos, custaria uma fortuna (que não temos). Pena é que casos de real e flagrante sucesso, como o da francesa Céline Alvarez no ensino público francês, sejam descartados. A boa notícia é que ela está a criar um site com material disponível para todos e espera traduzir para várias línguas, entre as quais o português. A não tão boa notícia é que andamos sempre a toque de caixa a seguir modelos mais ou menos importados, apesar de existirem casos interessantes na versão nós por cá. Oxalá a educação seja uma prioridade para o novo governo…

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    1. Concordo plenamente com essa vantagem mas sabes que já trabalhei com muitas crianças que notoriamente saíram prejudicadas de forma irreversível com o nosso sistema educativo (depois tentamos minimizar os estragos). Se os meus filhos forem como eu fui, uma mediana adaptativa, a coisa não correrá mal porque as escolas estão feitas para os medianos que cumprem os requisitos. Mas se eles tiverem alguma particularidade ou dificuldade, sei que o sistema os pode esmagar logo na primária, com o que isso acarreta para o futuro. Tem sempre a ver com o “tipo” de criança que temos e em algumas mais vale essa “protecção” durante mais tempo, pois comparando as consequências negativas em ambas as realidades, umas pesam muito mais do que outras. É por isso que não se pode dizer que o público ou o privado seja melhor, depende sempre das circunstâncias, da escola em si, da criança em questão.

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  5. Adorei esta reflexão!
    Os conflitos internos surgirão sempre, qualquer que seja a abordagem. Se conseguirmos avaliar “os resultados” na evolução dos nossos filhos e se observarmos que estão seguros e felizes então estamos no caminho certo.
    Encanta-me a abordagem Waldorf pela sua busca espiritual, que é muito enriquecedor. Estudei numa escola inaciana, que trabalha de certa forma a perspectiva espiritual e reconheço que marcou muita diferença na minha vida. Quando frequentei a escola “normal” nunca foi abordada esta vertente humana, e acho uma pena ter frequentado o ensino tantos anos e saber tão pouco sobre o crescimento espiritual da humanidade e a relação de equilíbrio com a natureza. Por isso mergulhei nestes estudos!
    Tanto Waldorf como Montessori preocupam- se com a criança como um todo, desde a aprendizagem cognitiva, a motricidade física, a Alimentação, a natureza e a construção da paz.
    Por casa vamos estudando e aplicando o que faz sentido para a criança e para a familia.

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  6. Tens razão, o desenvolvimento das crianças é o melhor barómetro.

    A antroposofia tem uma base cristã (e creio que a Maria Montessori era católica), mas tem uma vertente muito esotérica que francamente me põe de pé atrás. Como referiu a ‘Mãe sabichona’, corre-se o risco de se entrar numa lógica de seita. As linhas gerais são fantásticas, mas o aspecto de haver coisas que são para ‘iniciados’, que têm acesso a determinados ‘segredos’ do universo deixa-me desconfortável.

    A linha inaciana, com os exercícios espirituais de exame do dia, de consciência, etc (falo com muito pouco conhecimento da matéria), parece-me bem interessante. Usando uma metáfora, o que é luminoso e claro não me assusta, já as teorias (muito germânicas, aliás, onde os calendários lunares pululam e o cabelo deve ser cortado com a lua assim e na constelação assada) algo obscuras põem-me a milhas…

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